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Às mulheres em idade fértil, uma reflexão aos olhos da História de Uma Serva

“Quase um terço das mulheres portuguesas em idade fértil optou por sair do nosso país.” - CNN Portugal, 12 de janeiro de 2024

 

Uma das leituras mais marcantes da minha vida tinha acabado três dias antes de esta manchete sair, inevitavelmente a minha mente viajou para o livro de novo. Ironia do destino, talvez dirão.

“A História de Uma Serva” acompanha uma visão da nossa sociedade transformada por uma revolução teocrática, em que extremistas religiosos de direita derrubaram o governo e queimaram a Constituição dos Estados Unidos da América, agora República de Gileade,  um estado policial e fundamentalista onde as mulheres férteis, conhecidas como Servas, são obrigadas a conceber filhos para a elite estéril. Acompanha especificamente Defred que nos expõe os terrores que as mulheres nesta República vivem numa altura em que os nascimentos alcançam um grande decréscimo. O valor destas mulheres reside na sua fertilidade, em que rezam para que homens que não conhecem e com os quais são forçadas a não estabelecer nenhuma relação com as consigam engravidar, e cujo fracasso significa o exílio ou até mesmo morte. Estas mulheres são arrancadas das suas vidas para servirem um propósito - assegurar a continuidade de Gileade. 

Refletimos então. O que diremos quando, após esta leitura, nos deparamos com esta manchete? Depois de expostos a uma realidade aterrorizante? 

Questionamos o porquê de usarem um descritor tão redutor como “mulheres em idade fértil”.

Será mesmo esta a visão que a sociedade tem de nós, mulheres? Pensam que a nossa principal função é ter filhos? Não somos objetos de produção de bebés, não somos parideiras e o nosso propósito, caso o entendamos assim, não é ter filhos.

Questionamo-nos se isto significa que não existem crianças a nascer em Portugal? Existem, nasceram mais bebés em Portugal em 2023 e foi ultrapassada a barreira dos 80 mil nascimentos num ano. A que se deve a preocupação? 14 mil destes bebés têm mãe estrangeira, portanto não escondamos que a preocupação não é haver crianças, é a preocupação com estas crianças “não serem portuguesas”.

Questionamo-nos se uma realidade como a de Gileade seria concebível no mundo em que vivemos hoje? Tentamos acreditar nisto, mas fica díficil quando na comunicação social optam por nos tratar como incubadoras humanas.

Não queiram esconder que o problema é o machismo, o racismo e a crescente influência da extrema-direita religiosa no nosso país.

Então lemos a História de Uma Serva, uma realidade em que somos valorizadas pela nossa fertilidade e pelo número de crianças que conseguimos trazer ao mundo, em que somos isoladas para tal e temos de abdicar da nossa liberdade e da nossa livre sexualidade para dar crianças e garantir gerações.

Inconcebível? Não me parece.

Mafalda Rodrigues

Colaboradora do Departamento de Informação

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