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Revolução linguística: abracemes a diversidade 

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          Andei a pensar se a questão da diversidade na linguagem seria uma coisa de agora, do século XXI. Rapidamente me lembrei de uma série de artigos que li, revistas antigas que fazem parte da minha coleção ou, até, da fanzine que escrevi em tempos.

           Em 1996/97 estava na minha fase riot grrrl[1], ouvia Bikini Kill, Hole e uma série de outras bandas de punk-hardcore e escrevia uma fanzine pessoal: Kihin Zine. Revisitei-a no mês passado para perceber as tolices que andava a escrever na altura e fiquei surpreendida pelo facto — já não me lembrava de nada que lá tinha publicado — de utilizar o símbolo @ nos textos. Estávamos numa fase em que ainda não se pensava além do sistema binário, mas já se contestava a questão da linguagem não ser diversa e não representar todas as pessoas e recusavamo-nos a utilizar o masculino para designar o conjunto de homens e mulheres. Digo estávamos porque, obviamente, não era nem a única pessoa feminista da minha geração ou que escrivia fanzines, erames muites. Por isso, nos anos de 1990, escrevíamos coisas como Olá a tod@s ou vejam bem-vind@s e já nos sentíamos muito modernos e igualitários, verdadeires punks da linguagem.

         Lembro-me que, a partir de determinada altura, a discussão ultrapassou o binarismo de género e já não escrevíamos com @, mas sim com X. Não me recordo exatamente quando se deu esta mudança, só me lembro de ser uma alteração natural. Até que alguém descobriu que os programas de leitura de voz para pessoas cegas não conseguia ler os textos com X. Desde aí têm-se discutido que sistema utilizar para tornar um idioma cuja neutralidade é inexistente. Já surgiram algumas propostas, vindas do outro lado do oceano, do Brasil, bastante mais avançado nas questões de género e de diversidade que este nosso rectângulo parado no tempo. Em Portugal discute-se o que algumas pessoas chamam de idiotice dessa linguagem ou de ideologia de género do que se pensa numa alternativa linguística de diversidade e integração de todos os géneros. Até aqui, nada de novo: em Portugal a mudança nunca é bem-vinda e raramente as pessoas se conseguem colocar no lugar do outro. Veja-se a discussão sobre a ocupação de palco de Keyla Brasil (não, não foi só sobre teatro que se tratou) ou da gloriosa (not!) remodelação da Praça do Império (a sério que ainda estamos neste patamar?).

     Retomemos a diversidade linguística. Existem, que eu tenha conhecimento, dois sistemas propostos e que estão agora em discussão: o sistema gramatical elu/delu e o sistema gramatical ile/dile. Existem outras propostas, mas estas são as que reúnem maior consenso.

          Não são sistemas fáceis para pessoas adultas, é um facto. Estranha-se bastante a conjugação de algumas palavras, mas passado algum tempo de uso, tornam-se de uso natural. Imagino que se um destes sistemas fosse introduzido desde cedo, uma criança que o aprendesse, não estranharia o seu uso. Como já vos contei na crónica anterior sou algarvia e desde sempre que ouço termos como moçes, somes, todes, o que tornou muito natural a introdução de uma linguagem neutra no meu quotidiano.

          De uma forma muito resumida, sendo que eu optei por utilizar uma mistura dos dois sistemas gramaticais neutros para facilitar a minha vida, o que estes sistemas propõem é a troca do artigo o ou a por u ou e. Sempre que a palavra que queremos tornar neutra se aproxima do som do masculino ou do feminino, usamos a opção u ou e para a tornar neutra. E atenção: ninguém quer tornar neutras palavras que são objetos, plantas e afins, apenas as que se referem a pessoas. Lembrem-se, também, que esta é uma abordagem minha e pode não corresponder totalmente às propostas apresentadas nos sistemas gramaticais que refiro. Eu ainda estou a adaptar-me a esta nova forma de falar, ler, escrever e viver, e como tal, posso incorrer em incorreções e necessitar de desconstruções normativas de linguagem.

Passemos a exemplos práticos, porque se torna mais fácil:

 

Ele é bonito. Eles são bonitos.

Ela é bonita. Elas são bonitas.

Elu[2] é bonite. Elus são bonites.

 

Eu sou actor. Nós somos actores.

Eu sou actriz. Nós somos actrizes.

Eu sou actoru. Nós somes actorus.

 

Médico. Médica. Médique.

Leitor. Leitora. Leitoru.

 

Somos todos amigos.

Somos todas amigas.

Somos todes amigues.

 

Eu gosto dele.

Eu gosto dela.

Eu gosto delu[3].

 

Em vez de Homem, devemos optar por Humanidade.

 

E por aí fora. Opto quase sempre pelo sistema elu/delu, porque me parece mais natural e menos estranho aos meus ouvidos, mas não garanto que daqui a uns tempos não opte por outro tipo de linguagem. Será sempre uma linguagem inclusiva, diversa e que respeite as identidades de género de todas as pessoas e a minha própria desconstrução de normativas linguísticas, sociais e culturais.

          Para terminar, gostava de relembrar que é através da linguagem que as coisas existem. É através da linguagem que as pessoas são vistas e reconhecidas como intervenientes. É através da linguagem que as pessoas existem na nossa sociedade (veja-se os casos das pessoas racializadas). É através da linguagem que se fazem revoluções. Tornar o idioma que falamos inclusivo e diverso não é uma coisa idiota, não é uma perda de tempo, é uma revolução. Eu quero muito fazer parte desta revolução social e cultural. E tu?

 

Lúcia Vicente 

[1] O movimento Riot Grrrl nasceu nos Estados Unidos da América, no ínicio da década de 1990, e manifesta-se em diversas formas de arte feminista: música, teatro, artes plásticas, na literatura atraves de fanzines (uma especie de revista artesanal, distribuida por quem a escrevia ou por distribuidoras especializadas, reproduzida através de fotocópias). Este movimento, que rapidamente se espalhou pelo mundo, denunciava as normativas patriarcais, o assédio sexual a que as raparigas e mulheres estavam expostas quotidianamente e difundia ideais feministas.

[2] No sistema ILE utilizar-se-ia Ile é bonite. Iles são bonites.

[3] No sistema ILE seria dile, diles.

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