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Feministas: onde estavam com a cabeça?!

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É engraçado acharmos que vivemos um momento único na história. É engraçado, porque, quando o achamos, e dizemos, estamos também a dizer ao mundo que temos poucas leituras. Que não sabemos da nossa história, e que tudo o que se tenha passado há mais de 10 anos é, para nós, mistério insondável, perdido nas páginas dos livros que não lemos.

 

É engraçado quando encontro uma mulher que recusa assumir-se como feminista, mas diz ser a favor da igualdade de género. Só não gosta dessas coisas de queimar sutiãs [não aconteceu] ou do ódio aos homens [lol]. “Temos que querer ser iguais, não superiores”. É engraçado, porque esta mulher pouco ou nada sabe do movimento feminista. Pouco saberá, decerto, o tanto que lhe deve. É engraçado, porque esta mulher não compreende por que lhe custa assumir-se como feminista. Não compreende de onde lhe vem o medo e a repulsa à palavra. Afinal, quantas pessoas chacinou o movimento feminista? Quantas ditaduras facínoras impôs? Quantos desastres naturais lhe são atribuídos? Quantas almas amarguradas, quantos dias de tortura em prisões esquecidas lhe devemos? É engraçado, porque esta mulher não sabe que sempre a maioria das mulheres teve medo, como ela. Que somos irmãs no medo. Que ao longos dos tempos tantas, como ela, disseram o mesmo com outras palavras. “Não, eu não sou bruxa, só tenho e quero ter conhecimento.” “Não, não sou sufragista, apenas acho que algumas mulheres, pelo menos, talvez, pudessem poder votar.” “Não, não sou sufragista, apenas quero que as mulheres possam ser donas da sua sexualidade, terem direitos iguais, salário igual”. “Não, não sou feminista, apenas defendo igualdade salarial e direitos iguais.” “Não, não sou feminista, apenas quero ser reconhecida. Como mulher”.

Apenas quero ser reconhecida. Como mulher.

Nascer [mulher]. Crescer mulher [em liberdade]. Viver mulher [em liberdade]. O que quer que isso seja, para mim.

 

É engraçado que se ache tão natural assumir o masculino como género neutro, sem reflexão ou dúvida metódica. É engraçado, porque ouvi uma mulher explicar num programa de televisão – para separar e esclarecer as águas – que nunca pensava quer era mulher no seu trabalho. Quando era advogada, era um[?]  advogad[?] só, e nunca uma mulher. Falava como se quisesse livrar-se de um familiar inconveniente que apareceu de surpresa durante um jantar com amigos importantes. “Sim, a Ana é minha prima, mas coitada, veio das berças, não lhe liguem; sabem como é… deveres familiares”. É engraçado, porque não é a única. É um discurso comum em mulheres que se consideram profissionais de sucesso. Deixam a mulher de lado na sua vida profissional, garantem. Que é como quem diz “sou mulher, eu sei, é péssimo e fonte de imensa vergonha, mas não se preocupem; quando advogo [inserir profissão], deixo a mulher em casa, que é o seu lugar.” É engraçado, porque nunca ouvi um homem a dizer o mesmo. “Sou juiz, mas no tribunal nunca penso que sou homem, deixo o homem em casa”. “Sou médico, mas no bloco cirúrgico, esqueço-me que tenho pénis.” É engraçado, porque não precisam de dizer. Afinal, o masculino é o género neutro, a normalidade, o padrão ideal e a medida ideal de atuação humana. Ser mulher é algo ligeiramente menos. Incómodo. Persistente. Inconveniente. Contagioso. Exige medidas de contenção, não vá a nossa condição de mulher azedar a sopa, que é como quem diz. E nenhuma se assume como feminista [embora assumam que é mais difícil para as mulheres, e que ainda há muito por fazer] não vá o diabo tecê-las. Que é como quem diz, não vá o meu feminismo fazer baixar a quota da minha reputação no mercado dos homens sérios. Com letra grande. 

 

É engraçado quando alguém diz que é contra as quotas, porque é favor do mérito. É engraçado, porque a questão do mérito só surge quando se trata de escolher uma mulher… Nos homens, o mérito é pressuposto implícito. Não fossem os homens, lá está, o ideal neutro da humanidade. Com letra grande. Para as mulheres, com letra pequenina, em bom português, resta-lhes esperar, sem fazerem ondas nem grande alarde, que isto dos queixumes é coisa de mulher [com letra pequena]. É engraçado, porque o preconceito contra mulheres no contexto profissional está mais do que cientificamente demonstrado, mas continua meio mundo a dizer que não existe. Assim mais ou menos como o aquecimento global ou a destruição da flora e da fauna da terra pela ganância dos homens. Com letra pequena e com letra grande, que isto na maldade e na ganância somos todos iguais. 

 

É engraçado, porque se há coisa que uma mulher, com letra grande, sabe fazer, é sorrir no meio da maior miséria. Foi o que fiz, como mulher, ao ver o documentário da Netflix intitulado “FEMINISTS: What were they thinking”. Sorri muito e chorei muito. Em público e em privado, because the personnal is political. É engraçado, porque quando li o título assumi imediatamente que a tradução portuguesa seria “Feministas: onde estavam com cabeça!?”, que é como quem diz, assumi que se tratava de mais uma narrativa de responsabilização das feministas por todas as desgraças do mundo. Sim, porque é engraçado, mas as mulheres já são o bode expiatório dos males da história há mais de 2000 anos. Desde a mordidela na maldita maçã à eleição de idiotas como Trump e Bolsonaro, as mulheres [e seus desejos de conhecimento e igualdade] têm sido apontadas como responsáveis por homens sábios por todo o mundo. É engraçado, porque estes homens sábios  [e algumas mulheres] concluem, sabiamente, que o aumento do ódio, do radicalismo, ou do populismo nas sociedades ocidentais é o resultado dos movimentos feministas e LGBTI, que vieram exigir direitos iguais, reconhecimento, visibilidade, respeito. Porque homens por todo o mundo deixaram de poder coagir e assediar mulheres e chamar-lhe sedução ou “excluir rabetas do exército” e chamar-lhe cumprimento da lei, é natural que haja hoje tanta confusão sobre o que é justo e o que é certo. E é engraçado, porque a mim, que sou mulher e, naturalmente, menos sábia, parece-me que estão a dizer – admito das minhas infindáveis limitações, estar errada – que as mulheres deveriam ter ficado caladas. Que as pessoas LGBTI deveriam ter ficado caladas. Parece-me estarem a dizer que a sociedade era muito mais simples e menos conflituosa quando só havia dois géneros (e sexos) – homens, com letra grande, e mulheres, com letra pequena – e cada um sabia o seu lugar. Quando não tínhamos de nos preocupar com a sensibilidade d@ outr@ e respeitar a diversidade, orientações sexuais, identidades de género, preferências de tratamento ou de formas de cumprimentar. Era mais fácil quando podíamos só “grab’em by the pussy” com a certeza do silêncio. E é também engraçado, porque me parece que estes homens sábios estão a dizer o mesmo que quem acha que estamos a vier um momento único na história. 

 

É engraçado, porque a história repete-se, e um mesmo punhado de mulheres, com outros nomes e outras caras, continua a dar a cara, sem medo, por um mundo melhor, mais justo, mais igualitário e mais solidário, através do feminismo. O feminismo não é todo o caminho [nem toda a injustiça parte ou passa pelo género], obviamente, mas é parte do caminho. Sem medo, sem repulsa, com imensa gratidão por essas mulheres todas que falaram, criaram, ousaram e lutaram até hoje, humildemente ofereço a minha cara e o meu nome. 

Se nada mais puder fazer, como gratidão e compromisso perante estas mulheres a quem tanto devo, nos tempos de escuridão [mas também de muito riso e amor] que se avinham, como sempre ciclicamente, ao longo da história, e fazem parte da [R]evolução e da mudança, posso então apenas dizê-lo: sou feminista. 

 

Obrigada. 

Inês Ferreira Leite

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