top of page

Há mulheres que o feminismo não abraça?

Sou mulher há 34 anos, mas não há 34 anos sou mulher com deficiência.

 

Quando em 2016 me sentei na minha cadeira de rodas, que me traz a liberdade para me movimentar diariamente, não imaginaria que isso me faria menos mulher, aos olhos da sociedade. Reitero que, nunca me senti menos mulher, por estar sentada numa cadeira de rodas, mas sou percecionada desta forma, pela sociedade que me rodeia: capacitista, machista, e muitos outros “istas”.

 

Um corpo com deficiência, principalmente se feminino, é entendido como menos perfeito, menos bonito, menos aprazível, menos desejado, menos capaz, menos merecedor. Mas também é mais: mais vulnerável, mais abusado, mais frágil. É assim que a sociedade o entende, me entende, enquanto mulher com deficiência.

 

Mas não é só um entendimento ideológico, não é só uma questão de perceção, sensação ou estereótipos. É comprovado com números, vejamos:

  • Segundo o European Disability Forum: “... mulheres e meninas com deficiência enfrentam múltiplas formas de discriminação interseccional em todas as áreas da vida, incluindo desvantagens socioeconómicas, isolamento social, violência contra as mulheres, esterilização e abortos forçados, falta de acesso a serviços comunitários, habitação de baixa qualidade, institucionalização, cuidados de saúde inadequados e a negação da oportunidade de contribuir e se envolver ativamente na sociedade.” Esta discriminação para além de ser sentida em diferentes esferas da vida de uma mulher também é sentida de forma diferente de acordo com as características pessoais de cada uma: uma mulher, negra, lésbica e com uma deficiência pode ser discriminada por quatro ou mais razões.

  • De acordo com a Comissão Europeia, as mulheres com deficiência têm 2 a 5 vezes mais probabilidade de serem vítimas de violência, do que mulheres sem deficiência. (Eurostat, 2022) .

  • Em Portugal, mulheres com deficiência têm mais dificuldade de sair de uma situação de desemprego, de acordo com o relatório "Pessoas com Deficiência em Portugal – Indicadores de Direitos Humanos 2022" (6.a edição) da autoria do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH/ISCSP-U Lisboa).

  • De acordo com o Gender Equality Index de 2022, publicado pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Género: 23% das mulheres com deficiência estão em risco de pobreza, em comparação com 20% dos homens com deficiência e 16% das mulheressem deficiência.

  • A Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU, no seu artigo 6 refere: Os Estados Partes reconhecem que as mulheres e raparigas com deficiência estão sujeitas a discriminações múltiplas e, a este respeito, devem tomar medidas para lhes assegurar o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

  • A esterilização forçada de mulheres e meninas é ainda uma realidade na União Europeia apesar de infringir a Convenção de Instambul, quadro jurídico abrangente para proteger as mulheres de todas as formas de violência que entrou em vigor na União Europeia a 1 de Outubro de 2023. O número de esterilizações realizadas na Europa continua a ser desconhecido por ser um assunto tabu e sem números oficiais. Portugal, Hungria e Chéquia são os únicos três Estados-Membros que permitem a esterilização de menores.

     

"Em 20 anos de carreira, só conheci um caso de esterilização de um homem com deficiência intelectual e não tenho certeza se isso já foi realizado. No entanto, não tenho dedos suficientes na mão para contar o número de mulheres esterilizadas”

 

Rubén Parrillo, diretor do centro ATUREM in Euronews

 

Por todos estes dados e factos, e muitos outros que existem, e os que não são apurados, quando

pensamos em pessoas com deficiência é importante desagregarmos a reflexão, porque o impacto da discriminação e vulnerabilidade é, também, desagregado. Como vimos, as mulheres com deficiência frequentemente enfrentam desafios adicionais, que decorrem da interseção da sua identidade de género e da sua deficiência, estando mais suscetíveis a opressões e abusos em virtude da sua deficiência e do capacitismo sistémico, e também, do seu género e o do machismo.

 

Assim sendo, como podemos garantir um feminismo acessível e inclusivo sem que se identifiquem as necessidades e características especificas de diferentes mulheres? Um feminismo que não fique engessado na norma?

 

Comecemos por perguntar: serão todas as mulheres com deficiência um só corpo? Não!

 

Mulheres com deficiência têm diferentes corpos, com diferentes níveis de dependência, diferentes etnias e classes sociais, diferentes orientações sexuais e identidades de género, diferentes formas de comunicar e percecionar o mundo, sendo que, esses corpos, acolhem diferentes realidades. Inevitavelmente, esses mesmos corpos, acolhem e acumulam diversas

camadas de estereótipos e práticas discriminatórias que, como podemos constatar, não se esgotam na questão: género e deficiência.

 

O movimento feminista tem sido uma força motriz na luta pela garantia da igualdade de género e dos direitos das mulheres, mas abraça que mulheres? Será que a vertente interseccional do feminismo está presente nos diversos movimentos feministas em Portugal?

 

Tenho presenciado uma evolução na garantia da presença da mulher com deficiência em movimentos feministas, mas não posso dourar a pílula e dizer que: a inclusão da mulher com deficiência nos movimentos feministas é uma prioridade. Não é, ainda.

É importante reverter este panorama e promover ambientes acessíveis dentro dos movimentos feministas para que diferentes mulheres, incluindo mulheres com deficiência, possam estar incluídas e participar com equidade. Garantir que manifestos, eventos, reuniões não têm barreiras físicas, como degraus, escadas, WC inacessíveis, percursos inacessíveis; têm acessibilidade comunicacional, com legendagem, Língua Gestual Portuguesa, fontes e cores acessíveis, linguagem simples ou pictográfica, formatos digitais; têm acessibilidade atitudinal sem atitudes condescendentes, paternalistas e capacitistas; têm acessibilidade organizacional com a possibilidade de diferentes mulheres ocuparem diferentes espaços e lugares no movimento, com garantia de inclusão, equidade e pertença.

 

Em Portugal, conheço apenas um coletivo feminista liderado por mulheres com deficiência, o Coletivo Feminista AS DEsaFiantes, fundado em 2021, e, felizmente, já tive oportunidade de trabalhar com a Rede 8 de Março no sentido de tornar marchas e momentos, de forma geral, mais acessíveis e inclusivos. Mas o caminho ainda é longo. O caminho é longo para o Movimento Feminista que, com todas as suas demandas, não pode nem deve esquecer que também as mulheres são múltiplas e diversas e que, se não houver uma preocupação consciente sobre a acessibilidade e uma prática da inclusão, existirão sempre ausências.

 

Pensa...

Que corpos o teu feminismo deixa à porta?
Com que corpos o teu feminismo não comunica? Por que corpos o teu feminismo não luta?
Quais os corpos que o teu feminismo não abraça?

 

Urge refletir sobre estas ausências.

Urge que o ausente se faça presente.

Catarina Oliveira
bottom of page