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     “ (…) Com qualquer pretexto os nossos direitos, quando os temos, são esmagados: guerra, fundamentalismo, ditadura, crise económica ou qualquer catástrofe. Nos Estados Unidos, neste segundo milénio, discute-se não só o direito ao aborto, mas também os contracetivos femininos. Claro que ninguém discute o direito do homem a uma vasectomia ou preservativos. 

     A minha fundação ajuda a financiar clínicas e programas dedicados ao controlo da fertilidade, incluindo o aborto. É uma questão que me é muito cara, pois, aos 18 anos, tive de ajudar uma rapariga de 15 anos, aluna do ensino secundário, que engravidara. Chamemos-lhe Celina, uma vez que não posso dizer o seu nome verdadeiro. Recorreu a mim porque não se treveu a confessá-lo aos pais; no seu desespero, chegou a pensar-se em suicidar-se, tão grave era o que se passava. No Chile, o aborto era severamente punido por lei, mas amplamente pratica (e continua a sê-lo) de forma clandestina. As condições eram, e são, muito perigosas. 

Não me lembro de como consegui o nome de alguém capaz de resolver o problema de Celina. Apanhámos dois autocarros para chegar a um bairro modesto e andámos mais de meia hora à procura do endereço, que eu levava anotado num papel. Finalmente, demos com um apartamento no terceiro andar de um edifício de tijolo, igual a uma dúzia de outros que existiam na mesma rua, com roupa pendurada nas varandas e vasos a transbordar de lixo. 

     Fomos recebidas por uma mulher de aspeto cansado, que estava à nossa espera, pois eu tinha-a avisado por telefone, dando-lhe o nome do meu contacto. Aos gritos, mandou as duas crianças que estavam a brincar na sala fecharem-se no seu quarto. Era evidente que os rapazinhos estavam habituados àquela rotina, pois foram sem protestar. Um rádio troava as notícias e anúncios comerciais a um canto da cozinha. 

     A mulher perguntou a Celina a data da última menstruação, fez os seus cálculos e pareceu satisfeita. Disse-nos que era rápida e segura, e que, por pouco mais além do preço estipulado, usava anestesia. Pôs uma toalha de plástico e uma almofada em cima da única mesa que ali existia, provavelmente a mesa das refeições, pediu a Celina que tirasse as cuecas e subisse… Examinou-a rapidamente e pôs-lhe um cateter na veia do braço. «Fui enfermeira, tenho experiência», disse em jeito de explicação. E acrescentou que o meu papel era injetar pouco a pouco a anestesia à minha amiga, apenas o suficiente para a atordoar. «Cuidado, não exagere», advertiu. 

     Em poucos segundos, Celina estava semi-inconsciente e, em menos de 15 minutos, havia vários trapos ensanguentados no balde aos pés da mesa. Não quis imaginar o que teria sido aquela intervenção sem anestesia, como quase sempre é praticada nestas circunstâncias. As mãos tremiam-me tanto que não sei como me ajeitei com a seringa. Ao acabar, pedi licença para ir à casa de banho e vomitei.”

           

Isabel Allende

in As mulheres da minha alma

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