Crimes Sexuais: Uma Perspectiva Jurídico Social
Os crimes sexuais são crimes de especial relevo para o Direito Penal dado que, para além de comportar vasta divergência doutrinária em relação à abrangência do bem jurídico protegido, está intrinsecamente relacionado com a violência baseada no género face à desproporcionalidade em que mulheres são afetadas por esta categoria de delito. Importa, primeiramente, compreender a violência de gênero, para então analisar a ratio do bem jurídico protegido e, por fim, nos debruçar nas possíveis amplitudes dessa proteção. Cabe, agora, referir a construção lógica da estreita ligação entre crimes sexuais e a violência contra a mulher, à luz da Convenção de Istambul.1 Sinteticamente, a violência contra a mulher é fruto de um longo processo histórico estruturado como um mecanismo social para que as relações de poder entre homens e mulheres sejam desproporcionais, na medida em que, as mulheres adotam uma posição de subordinação e os homem sobrepõem-se por meio da dominação e discriminação. Assim, o poder de dominação, além de ser coercitivo e repressivo, é também reprodutivo e se mantém por meio de “práticas e técnicas que foram inventadas, aperfeiçoadas e se desenvolvem sem cessar. Existe uma verdadeira tecnologia do poder, ou melhor, de poderes, que têm cada um sua própria história" (Foucault, 1999, p. 241).2 Deste modo, concretizando através de dados, no ano de 2021, a APAV registou que 77,9% das vítimas de crimes sexuais são do sexo feminino, enquanto 19,6% são vítimas do sexo masculino. Em termos de faixa etária, as mulheres vítimas situam-se entre os 25 e os 54 anos. Convém ainda destacar que a maior porcentagem de autores é do sexo masculino, 60,9% , ao passo que a porcentagem de mulheres como agentes ativos do crime é de 11,9% dos registros realizados pela APAV 3 . Nesse sentido, entende-se que valores éticos-sociais determinantes para permanência das relações de poder já consolidadas também se manifestam no Direito penal, designadamente, no que toca ao bem jurídico tutelado nos crimes sexuais. Na versão original do Código Penal, em 1982, os crimes sexuais eram considerados crimes contra “fundamentos ético-sociais da vida social”, relacionados com “sentimentos gerais de moralidade sexual”. Assim, apenas com a reforma de 1995, estes crimes passaram a ser integrados como crimes contra pessoas, nomeadamente, “contra liberdade e autodeterminação sexual” (Livro II, Título I, Cap. V do CP)4 . Portanto, agora, o que bem jurídico tutelado não é a moral ou os bons costumes, mas sim a violação da liberdade sexual do agente passivo, seja na sua vertente positiva (liberdade para as pessoas se relacionarem conforme sua vontade livre), seja na sua vertente negativa (liberdade para recusar relacionamentos sexuais)5 .
Nesse sentido, mesmo após a revolucionária alteração de 1995, a lei penal até 2015 (Lei nº 83/2015) não tutelava de modo claro e assertivo a liberdade sexual devido aos diferentes entendimentos referentes ao conceito de "violência", “consentimento” e "constrangimento", essenciais para a constituição do "núcleo da proteção da liberdade sexual”6 , nomeadamente, os crimes de violação e de coação sexual7 . A interpretação de "violência" dividia-se em três perspectivas essenciais: (1) a exigência de uma luta entre a vítima e o agente - resistência da vítima - tese restritiva; (2) não necessariamente exige resistência da vítima, mas sim um “plus” de força física entre vítima e agente - tese intermédia; (3) a simples atuação contra a vontade da vítima já deveria ser considerada violenta - tese abrangente. A primeira posição é inadmissível, além de não encontrar qualquer apoio na lei. Quanto à segunda posição (predominante na doutrina) apesar de encontrar apoio na lei, tal como a terceira não estão isentas de dúvidas à luz do princípio da tipicidade, da segurança jurídica e da necessidade da pena (art 18º, nº 2, CRP)8 . À vista disso, a Convenção de Istambul, no seu art. 36º, estabeleceu o conceito de violação recorrendo à figura do “consentimento” da vítima, balizado na noção de ausência de consentimento livre. Assim, o artigo criminaliza condutas de caráter sexual não consentidas por outra pessoa, ainda estabelecendo no nº 2 do mesmo artigo que este consentimento deve ser prestado livre e voluntariamente sendo “avaliado no contexto das circunstâncias envolventes".9 Entretanto, embora a orientação dada pela Convenção de Istambul, o Código Penal Português mesmo após as alterações feitas pela Lei nº101/2019, preferiu continuar a recorrer à figura do "constrangimento” ao invés de impor a ausência de consentimento livre. Entende-se que o modelo de constrangimento adotado pelo Código Penal, somado à exigência de vontade “cognoscível” (art. 163º, nº 3 e art. 164º, nº 3), não implica em grandes diferenças teóricas comparado com o modelo de consentimento, porém revela importância na prática. Na maioria dos casos, os modelos levam ao mesmo resultado (se “sim”, há consentimento; se "não”, não há consentimento), todavia, parte da doutrina refere uma zona cinzenta, não abrangida pelo modelo do "constrangimento", correspondente aos casos de consentimento viciado por indução em erro, aproveitamento de erro, bem como situações de vítimas com debilidades na expressão/formação da vontade (hesitação) e exploração de constrangimento por terceiro10 . Desta maneira, conclui-se, que se a lei penal mencionasse a ausência de consentimento livre, como o art. 36º da convenção de Istambul, seria tutelado de forma inequívoca e abrangente a liberdade sexual das vítimas, sem violar o princípio da proibição do excesso, pois não seria necessário um sim expresso e entusiástico para afastar a conduta típica dado que o acordo tácito, tendo em conta as circunstâncias envolventes, também seria considerado legítimo11 . Sendo assim, visando a prevenção e o combate à violência de género, destaca-se a importância, para melhor eficácia de proteção às vítimas, a existência de uma lei penal clara e inequívoca que não abarque apenas os casos mais evidentes de violência contra mulher, mas ainda aquelas zonas cinzentas cujos casos são mais complexos. Logo, assinala-se a importância de tutelar os casos em que o consentimento foi sujeito ao erro, dado tacitamente ou prestado em estado de dúvida/ hesitação, consequentes de uma especial situação de vulnerabilidade da vítima.
1Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, aprovada em 11/05/2011, ratificada por Portugal em 21/01/2013 e que entrou em vigor a 01/08/2014 ::: Resol. da AR n.º 4/2013, de 21 de Janeiro (pgdlisboa.pt)
2 Narvaz, Martha, Nardi, Henrique Caetano. (2007). Problematizações feministas à obra de Michel Foucault. Revista Mal Estar e Subjetividade, 7(1), 45-70. Recuperado em 23 de fevereiro de 2023.
3 Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Estatísticas APAV Relatório Anual. 2021.https://apav.pt/apav_v3/images/press/Relatorio_Anual_2021.pdf
4Conceição Ferreira da Cunha da MARIA. Crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Repositório Universidade Católica Portuguesa. Crimes sexuais contra crianças e adolescentes.pdf (ucp.pt)
5 Idem.
6 FIGUEIREDO DIAS, «art. 163º», in Comentário…cit., p. 716, § 5
7 Artigo 163º e 164º CP.
8 Conceição Ferreira da Cunha.A tutela da liberdade sexual e o problema da configuração dos crimes de coação sexual e de violação – reflexão à luz da convenção de Istambul Crimes sexuais - 2.ª edição (justica.gov.pt)
9 Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica,art 36º, aprovada em 11/05/2011, ratificada por Portugal em 21/01/2013 .
10 Idem
11 Idem.
Luiza Camargo
Secretária do Conselho Fiscal