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Violência doméstica: panorama geral de uma incessante patologia

No início dos anos 60, com a Segunda Vaga dos movimentos feministas, o conceito de “violência contra as mulheres” surge como oposição aos termos técnicos consolidados até então, como “violência no casal” ou “violência familiar”. Uma das principais ativistas da época, Carol Hagemann-White, relacionou este tipo de violência com a questão de gênero uma vez que a individualidade da vítima é negada, sendo reduzida ao simples facto de ser mulher e, como tal, violável. A violência contra a mulher, ainda presente hoje, é consequência lógica de séculos de socialização depreciativa do papel das mulheres e repressiva quanto às tentativas de mudanças sociojurídicas do estatuto da mulher. 

Como uma das formas de violência de gênero, a violência doméstica desenvolve-se no âmbito familiar, no lar da família, que em termos idealizados é um espaço de intimidade e, portanto, distanciado e privado da vida social coletiva. Este distanciamento torna possível compreender como a violência doméstica é perpetuada por gerações através de dito populares, como “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, que evidenciam o silenciamento de mulheres agredidas e o desamparo destas por parte do poder público – que se manteve ausente (a nível mundial) das discussões acerca da violência de gênero até a década de 90. É apenas em 1995 que a IV Conferência Mundial sobre a Mulher inclui “Violência contra a Mulher” como uma das áreas de preocupação sobre direitos de mulheres e meninas; nesta conferência, o conceito de gênero é definido a partir da análise do papel das mulheres como um produto de padrões determinados social e culturalmente e, portanto, passíveis de mudanças, afastando a ideia de estaticidade baseada no aspecto biológico, predominante até então. 

A partir dos anos 2000, em Portugal, há sucessivas transformações no sentido de maior proteção de vítimas de violência doméstica, majoritariamente mulheres: a possibilidade de aplicação da pena de proibição de contacto com a vítima, incluindo o afastamento do agressor da residência desta, mostrou a predominância da tutela dos interesses da vítima em detrimento da reserva de intimidade do agressor. Outra relevante mudança foi a alteração da natureza do crime; a advogada e ativista, Maria Alzira Lemos, entende a violência doméstica como violação de direitos humanos e, portanto, o crime deve ser público pois a responsabilidade não pode pesar somente sobre as vítimas, muitas vezes coagidas a não denunciar o agressor ou não prosseguir com a queixa.  

A revisão do Código Penal em 2007 trouxe novas sanções acessórias como a fiscalização do cumprimento da proibição de contacto com a vítima por meios técnicos de controlo à distância e a frequência obrigatória de “programas específicos de prevenção da violência doméstica”. A Direção Geral dos Serviços Prisionais e Reinserção Social diz que o Plano para Agressores de Violência Doméstica (PAVD) era aplicado pelos tribunais visando promover a consciência e a responsabilidade do comportamento violento nos agressores. É uma estratégia alternativa que visa a diminuição da reincidência criminal; a investigadora Dalila Cerejo diz que os agressores são homens comuns, “aos quais, ao longo da vida, lhes é ensinado que a violência e o uso da mesma é uma arma legítima no contexto dos modelos e valores de gênero de masculinidade”. Percebe-se, assim, que o crime de violência doméstica é ensinado pela sociedade, seja por sutis comentários acerca da submissão da mulher, seja por exaltação da força e superioridade masculina. 

A partir de 2009, diversos outros mecanismos jurídicos e sociais são criados visando aprimorar a proteção das vítimas de violência doméstica. A determinação do caráter urgente do crime; a possibilidade de indemnização às vítimas; o apoio financeiro público às Casas de Abrigo; as salas reservadas ao atendimento à vítima; a definição de requisitos e qualificações necessários à formação dos profissionais de apoio à vítima; entre outras medidas contribuíram para a segurança pessoal e o apoio emocional necessários às vítimas. No mesmo ano, no âmbito da Direção-Geral da Saúde (DGS), cria-se o “Programa Nacional de Prevenção da Violência no Ciclo de Vida” com o objetivo de reforçar os mecanismos de prevenção, diagnóstico e intervenção no que se refere, entre outras, à violência doméstica.

Embora tenha entrado em vigor no ano de 2009, a necessidade de salas reservadas ao atendimento às vítimas, por vezes, não era devidamente implementada. No final de 2018, apenas 63% dos postos da GNR e esquadras da PSP possuíam uma Sala de Atendimento à Vítima (SAV). A advogada e ativista da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), Elisabete Brasil diz que “muitas destas salas acabaram por não ser utilizadas para o efeito que foram criadas e, portanto, tornaram-se salas de arrumos ou salas para guardar armas” e critica também a ausência de profissionais devidamente qualificados a atender denúncias de violência doméstica. Enfim, a UMAR denuncia relatos de vítimas de violência doméstica que tiveram um mau atendimento em esquadras e postos ao prestarem queixa contra o agressor e indica às vítimas a recorrer às ONGs, que irão apoiar a vítima emocional e judicialmente. Se as legislações criadas para proteger as vítimas de violência doméstica não são integralmente cumpridas, a tutela das vítimas se mostra diminuta ou ineficaz.  

Fruto de um longo processo de enraizamento de condutas misóginas, de desprezo e perversidade para com as mulheres, a violência de gênero e, aqui em causa, a violência doméstica contra as mulheres ainda se faz (muito) presente. Em Portugal, só em 2019* foram feitas, aproximadamente, trinta mil denúncias do crime de violência doméstica – se por um lado, evidencia um aumento de confiança das vítimas às entidades públicas ou ONGs, por outro, enfatiza a persistência e a profundidade do problema que se pretende resolver. Ainda é preciso efetivar os mecanismos já existentes para que sejam mais eficazes não apenas no que tange à proteção da vítima, como também na prevenção e na eventual extinção deste tipo de crime. Mas não bastam mecanismos jurídicos: é necessário que a educação desde a mais tenra idade seja voltada para a não violência e, sobretudo, para o fim dos papéis de gêneros que historicamente inferiorizam as mulheres e legitimam a violência sobre estas. 

 

*o ano de 2019 foi escolhido como referência por representar a “normalidade” anterior à pandemia, que alterou drasticamente o cenário das relações sociais e das possibilidades de denúncia e de aplicação de medidas restritivas 

Clara Forni

Vice-Presidente do Conselho Fiscal

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