Vida das Mulheres Importa?
Percorrendo os becos estreitos com os pés a pesar os passos no arreal, ao dobrar da esquina da casa dos meus pais, uniformizada e de mochila nas costas, a talvez uns cem metros do meu ponto de partida, cruzava com a Joaquina, minha amiga com quem brincava cheia, saltava a corda, a vender na banca dos seus pais.
Parava com ela alguns instantes a conversar sobre como tinha sido a minha manhã e seguia, a questionar-me porque razão ela não vinha comigo. Iamos poder fofocar juntas pelo caminho e, nos intervalos, brincariamos juntas como fazíamos no bairro Luís Cabral, na periferia de Maputo.
As minhas indagações infantis logo se perdiam, ao encontrar, alguns passos na frente os rapazes que partilhavam as mesmas chapas de zinco com Joaquina com quem ia até a escola...
Já nessa altura comecei a perceber as diferenças sociais e as distâncias que separam homens e mulheres. A vida das Mulheres importa?
Como podemos ser seres humanos iguais se os meninos têm os momentos do futebol enquanto Joaquina lava a loiça, nos intervalos da venda de pão?
Como podemos partilhar dos meus direitos se enquanto o Tony se forma, milhares de Joaquinas permanecem presas a um banca improvisada, que é fonte de substância de uma família de cerca de 14 membros?
Ter seios, amamentar, ter um útero, menstruar, conceber uma nova vida ou gerir cólicas menstruais ainda continuam a ser as características negadas socialmente para distinguir homens e mulheres.
Embora existam direitos e deveres estipulados por lei, ainda continua de forma recorrente e persistente a renegação dos mesmos em sociedade. Tudo porque apesar de estar escrito que as mulheres tal como os homens têm os mesmos direitos e deveres em todos os domínios da vida política, social e cultural estas cláusulas são abafadas pela construção social que distancia os mesmos seres sensenteiando as mulheres a uma posição de subalternidade em relação aos homens.
Enquanto o homem nasce livre com privilégio único de fazer escolhas e ser o dono da última palavra e direccionador da sua vida, a mulher deve culturalmente seguir o vento que lhe é imposto pela sociedade.
Quando uma menina nasce, há tradições que não aplaudem este fenómeno, pois trata-se de um ser que é um prejuízo na família, pois para além de ser alimentada e crescer, vai pertencer à outro agregado que lhe der o tão sonhado prestígio de casar.
Em vários momentos da minha construção enquanto mulher e Mulheres me questionei se realmente a vida das Mulheres moçambicanas importa e penso que não seja uma questão apenas minha, pois, na medida em que eu ia crescendo, minha adolescência e também já adultas, conheci mulheres meninas que se confrontavam com a mesma questão.
Mas será que ser mulher é importante?
Nasci e estou inserida numa sociedade onde existem barreiras como qualquer outra sociedade, porém as mulheres é que carregam o fardo maior quando falamos de direitos que devíamos gozar enquanto seres humanos.
Falo aqui de direitos fundamentais como o acesso à uma educação formal, de fazer escolhas e até mesmo o direito à vida.
Até que ponto os direitos humanos das mulheres são respeitados numa sociedade patriarcal e machista quanto a nossa?
Apesar de lá na infância, minha realidade estar distante da vida da Joaquina (apesar de tão próxima), eu tinha o privilégio de sentar-me numa carteira e replicar o abc, porém só podia desfrutar do universo do conhecimento depois de concluir as tarefas domésticas.
Lembro-me do meu irmão mais velho, mano Maves, que seguia-me para cada cómodo da casa para contar-me os enredos dos filmes que eu perdi. Enquanto eu trabalhava, ele distraía minhas mãos ocupadas com os espaços que visitara na noite anterior enquanto eu terminava de cozinhar ou punha a mesa.
Estas diferenças de tratamento perseguem as mulheres e fazem-na pensar ou se apropriar do único papel de cuidar do lar, da família, do homem e etc.
As raparigas nunca escolhem e, no entanto, lá estão a serem ensinadas a delicadeza e os cuidados do lar, enquanto os meninos são treinados a ter poder, através das armas que lhes oferecem como brinquedo, a serem poderosos quando podem conduzir carros e tomar o espaço público como propriedade para futuramente se tornarem provedores das casas, os donos da última palavra e os donos das Mulheres.
Várias meninas Mulheres são sentenciadas a seguir este roteiro de vida em função das normas sociais totalmente nocivas que tornam as lutas feministas num processo de mudança demorado e deficitário
Uma das principais barreiras para o alcance da igualdade de género são estes hábitos e costumes enraizados que muitas vezes vedam as aptidões e capacidades das mulheres e raparigas colocando-as sempre e permanentemente numa posição abaixo e por vezes de invalidez na sociedade.
O outro entrave é que estas violações dos direitos humanos das Mulheres são normalizadas em todas as camadas da sociedade onde boa parte das mulheres está longe de compreender que esta construção é prejudicial para as suas vidas e estes homens encontram-se confortáveis nesta posição superior com um apoio dos reforçadores das moralidades que são as igrejas, os líderes comunitários e os anciãos.
Um homem que cresce olhando a mulher como um ser que nasceu para servir e que é comprado através do lobolo tem esta mulher como propriedade e com ela pode fazer o que quiser incluindo a violência e o desrespeito.
Uma mulher que nasce e se vê inferior ao homem tende a duvidar de si própria, entrega-se ao comodismo e acredita que sofrer seja o direito natural por ter nascido mulher.
A Joaquina que cruzar-se com a Énia que questiona o facto desta não ir à escola, impulsiona no nascimento de uma nova geração que os seus avós compreendem a importância da educação.
Percorrendo os mesmos becos estreitos com os pés pálidos no mesmo arreal de Luís Cabral, eis que cruzo-me com uma rapariga que pelos bicos dos seus seios aparentava ter 15 anos. A menina interrompeu-me a viagem e disse: - Tia, tens alguma pasta em casa que já não a usas?
Ao que reagi perguntando: - Porquê?
Ela: - Quero usar para ir à escola.
Énia Lipanga