Foto(grafada): a captura da imagem da mulher negra sob o olhar colonial.
Cidade de Salvador na Bahia. Apreciando a criação de Deus a menina-mulher negra optou por ir à praia. Sozinha, de biquíni, expôs seu corpo para os olhos do Sol. Ora, os demais, olhos humanos, não deixariam de ver a sua beleza. E está tudo bem! Entretanto, um homem interpretou, na sua condição de turista, que a menina estava exposta para lhe garantir uma fotografia. Desatenta, a menina não percebeu a captura da sua imagem. Quando finalmente virou-se na direção do fotógrafo identificou o quadro: homem, turista, câmera fotográfica. Atrás das lentes lá estava o olho azul. A menina demonstrou a sua expressão de desaprovação. O turista, então, interrompeu a sessão fotográfica não autorizada e sorriu.
Sim ele sorriu. Não houve desculpas, apenas um sorriso a indicar o não constrangimento, pois, a sua mente-visão doutrinada em parâmetros coloniais lhe informa que mulher negra de biquíni é objeto fotografável incluído na paisagem turística. A menina preenchida de por quês, paralisada pela violência, não sabia que somente no futuro encontraria respostas e forças para compreender o passado.
E faz todo o sentido embaraçar passado e futuro, afinal já fora ensinado que é possível matar no ontem com as pedras lançadas hoje[1]. Ensinado, também, que o Tempo é uma Entidade que gosta, inclusive, de observar a racionalidade humana ocidental em sua lógica linear imposta a ele: a sequência rígida do passado, presente e futuro. A Entidade te lança perguntas hoje e responde no ontem. O tempo gosta do movimento cíclico sacou?
Lisboa, Praça do Chiado. A menina-mulher depara-se, novamente, com uma tentativa de fotografia não autorizada, mas, dessa vez, mais esperta, a menina logo viu e encarou o fotógrafo. Ele automaticamente baixou a câmera: lá estava o olho azul flagrado. Agora a menina tinha consciência-conhecimento que lhe permite compreender o que estava acontecendo. Os ensinamentos do Feminismo Negro garantiam alta capacidade de percepção e abriram caminhos para respostas-defesas. Estava munida e protegida com a sabedoria feminina ancestral e negra. Dessa vez, sem sorrisos, ele olhou para cima, para baixo, desajustado, intimidado, mas não pediu desculpas. Aqueles olhos azuis fotografaram prédios, monumentos, o elétrico e queria colocar no mesmo álbum de viagem a imagem não autorizada da mulher negra. Expostos à sua lente: monumentos e o corpo negro – “objetos” turísticos igualmente disponíveis.
Cabe explicar. Ele vê um corpo exótico, étnico ... uma mulata. Essa leitura é alcançada graças aos ensinamentos da feminista negra Senhora Lélia Gonzales. A feminista assume o “ato de falar com todas as implicações”. Exatamente porque estava exausta de ver como a mulher negra era um “objeto” falado pelos outros, mas sem direito a falar por si[2]: “o fato é que enquanto mulher negra sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelos esforços de investigação das ciências sociais”[3] E diz mais, afirmando como essa narrativa estereotipada da mulata/exótica permite que a mulher negra seja “devorada pelo olhar dos príncipes altos e loiros vindos de terras distantes”[4].
Então lancem as pedras no hoje. Cabe “cutucará culpabilidade branca”[5]. Filipa Vicente identificou nos legados fotográficos da experiência colonial portuguesa uma prática comum: homens brancos colonizadores fotografavam mulheres e meninas negras, nuas ou seminuas, em territórios coloniais. Vale a reprodução do artigo:
“Num álbum de 1934, chamou minha atenção uma das fotografias: Rosita uma das mulheres balanta trazida da Guiné para “habitar” aldeia fictícia construída nos jardins do Palácio de cristal, era a protagonista da imagem... Sob a fotografia colada no álbum, uma frase escrita à mão que copiei para um caderno: Quem vai dormir com Rosita hoje à noite? A interrogação anônima jocosamente dava voz a vários homens - Rosita surgiu como sexualmente disponível para os homens da etnia balanta ao seu lado na fotografia; para os milhares de homens portugueses que visitavam a exposição; para o fotógrafo; e para todos aqueles que veriam as suas fotografias erotizadas - em postais, em folhetos, nos jornais ilustrados ou no catálogo da exposição”[6]
Ora, mãos coloniais não só fotografavam mulheres negras, negando humanidade para elas, como também construíam uma narrativa para a imagens expostas. A ideia era: elas estão disponíveis. Rosita e outras tantas mulheres negras, em tempos de escravidão e colonização, não possuíam o controle sobre as suas imagens, ou melhor, não tinham controle sobre as imagens-narrativas que o colonialismo desejava impor sobre seus corpos.
Quem garante explicações mais uma vez, é uma mulher negra: “Ao corpo é dado uma lógica própria. Acredita-se que, ao olhar para ele, podem-se inferir as crenças e a posição social de uma pessoa ou a falta delas ... Consequentemente, uma vez que o corpo é o alicerce sobre o qual a ordem social é fundada, o corpo está sempre em vista e à vista.... A razão pela qual o corpo tem tanta presença no ocidente é que o mundo é percebido principalmente pela visão. A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo, cor da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribuídos ao “ver”. O olhar é um convite para diferenciar.”[7]
Enfim, são mulheres negras feministas que vão continuar produzindo respostas-curas. Explicando o passado e suas continuidades. Explicando essas e outras violências cotidianas. Repete-se, quotidianas. Os tempos se embaraçam, mas as curas surgem das vozes de mulheres. É oralidade contrapondo a visão violenta. É tempo de escutar Bell Hooks: propõe-se “uma narrativa visual nos desafiando a ver mulheres negras como sujeitos e não como objetos.”[8]
[1] Ditado yorubá : Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje.
[2] GONZALES Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244
[3] Gonzalez, 1984.
[4] Gonzalez, 1984.
[5] Gonzalez, 1984.
[6] VICENTE, Felipa Lowndes. Mulheres negras: a banalização dos corpos colonizados. In Jornal Público. 29 de Agosto de 2021.
[7] OYÈRÓNKÉ, Oyewùmí. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de janeiro: Bazar do Tempo, 2021. P 28-29.
[8] HOOKS, Bell. Olhares negros – raça e representação. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019. P 29
Thaianne Sousa Santana
Colaboradora do departamento de informação