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Escutando vozes ... Mulheres, Memórias sem fim.

O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá fica para sempre. Eu acreditava nisto...1*

N
o contato com as primeiras palavras impressas nas páginas da Obra-Sabedoria “Eu, Tituba, Bruxa ... Negra de Salém”, Maryse Condé faz questão de anunciar que conviveu com Tituba em “estreita intimidade”. Afirma, livre de hesitações, que as duas tiveram “intermináveis conversas” e que agora iria repassar, por meio da literatura, os diálogos ainda não confiados a ninguém 2* . Ora, Condé é nascida em Guadalupe em 1934, escreveu a obra citada em 1986. Como fora possível estas conversas intermináveis com a personagem protagonista do livro se a história de vida-memória que embasa essa literatura aconteceu, originalmente, no século XVII?

Quer saber a verdade? Bom, tal como outras mulheres, Maryse Condé passou a “ouvir vozes” do passado. Sim, a escritora reconheceu valor e peso histórico para histórias de vidas silenciadas. Memórias estas que estão por aí, contando fatos de extrema relevância para compreensão da historiografia da humanidade, mas, infelizmente nem sempre encontram ouvidos atentos.

Não é necessário mediunidade ou uso de instrumentos religiosos para ouvir estas vozes, bem como não é pertinente falar em “bruxaria”. Basta ter como ponto de partida a lição de que a humanidade está repleta de sujeitos históricos e questionar-se: quem foi alocado como o “outro”, “coisa” sem voz, propositadamente invisibilizado?

Foi assim que Maryse Condé “conversou” com Tituba. Ela desejava ampliar os limites da Memória Coletiva sobre o passado. Ela viu o espaço ... o vazio promovido pelo ato de não rememorar as histórias de vida de mulheres. Focou na narrativa de Tituba, mulher negra escravizada e condenada nos processos das “Bruxas de Salém”3* , e então entregou ao mundo uma obra com peso político e histórico. É isso que acontece quando se procura pesquisar e divulgar a atuação das mulheres: revelam-se sujeitos históricos potentes.

Contrariando as narrativas lineares e simplistas das mulheres como sujeitos unicamente subordinados, sem comportamentos políticos relevantes 4* , surgem mais e mais publicações a informar atuações femininas com impacto. É possível agora ter contato com biografias revolucionarias. Ter contato com textos críticos que revelam as experiências das mulheres, pois existem pessoas que se propõem a elaborar, pesquisar e divulgar tomando como ponto de partida “lugares diferentes”. Para os que acreditam na ideia da inexistente atuação feminina com agente histórico político, cabe explicar: isso é uma distração... uma tentativa de apagamento do significado das experiencias femininas.

Não se trata de eleger mulheres para transformá-las em ícones santificados, pelo contrário, essas narrativas do passado servem para formar uma consciência feminista, estimular senso crítico, olhar o legado e compreender, com mais amplitude, toda a capacidade de atuação humana. Essas narrativas são extremamente importantes, acolhedoras e promovedoras de conhecimentos estratégicos. Não são poucas as vozes memórias que desejam “fazer eco” e são uteis. Poucos são os aptos a escutar.

Aos pré-dispostos, sem mandiga, bruxarias, nem rezas, é possível captar as potentes vozes femininas que lançam, desde os primórdios, diferentes discursos do passado. Lilith que, segundo a tradição judaica, fora a primeira esposa de Adão, fora literalmente censurada do texto bíblico 5* numa tentativa de apagamento da sua história. Reitera-se, tudo não passou de uma tentativa, pois, não por acaso, o nome suprimido está aqui, agora, fazendose presente e ecoando.

Cabe lembrar Fuks, a pontuar que existe “a voz que fala para preencher o silêncio, a voz que outros quiseram silenciar, não poderia ser diferente, é a voz de uma mulher... A narradora inominável não pôde falar durante décadas - durante séculos... ou ao menos não pôde ser ouvida, ninguém a quis ouvir... o próprio tempo não lhe pertence - tudo o que lhe resta é a voz, a possibilidade de indagar o passado com obstinação e de ocupar com palavras o presente”.6* 

Ora, fique exposto que Bruxo é o Passado, ludibriando os desatentos: finge estar morto! Felizmente existem ouvintes por aí, estes percebem os “encontros” do Passado como a Senhora Memória. Sim, a Memória é uma “Mulher”. Desses encontros surgem diálogos, com tom, timbre, e orientação, que vocalizam e en(cantam):

“Carrego rugas, verrugas Vida, tartaruga em mim
Eu sou sem fim [...]
Desde menina a vida me ensina a ser assim” 7* .



1* AGUALUSA, Jose Eduardo. O vendedor de passados. Lisboa: Quetzal Editores. 2022. P 49;
2* “Maryse Condé (1937-2024);
3* “Eu, Tituba: Bruxa…. Negra de Salém - recupera um episódio da história que reside no imaginário popular, no cinema, no teatro e da literatura e narra, segundo o olhar de Tituba, a única negra ligada a este acontecimento e uma das poucas sobreviventes do Julgamento que, em 1692, teve lugar em Salem, Massachussets [...] Ao oferecer a Tituba a condução da história, Maryse Conde faz mais do que criar uma protagonista escrava: analisa as questões do capitalismo e colonialismo”Analise critica do Livro feita por Ana Paula Tavares disponível em : https://www.buala.org/pt/mukanda/eu-tituba-bruxa-negra-de-salem;
4* Afinal já se afirmou que “a história das mulheres diz respeito ao sexo e a família e deve ser feita separadamente da história política e econômica” e nessa perspectiva mulheres não eram vistas como agentes históricos com experiências importantes a ser objeto de investigação e compreensão da história passada. A citação faz referencia a logica de pensamento dos historiadores não feministas citado por SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de analise histórica. Revista Educação e Realidade. Jul/Dez. 1995 – p 71-99;

5* Laraia, R. de B. (1997). Jardim do Éden revisitado. Revista De Antropologia, 40(1), 149- 164. https://doi.org/10.1590/S0034-77011997000100005;
6 Julian Fuks citado por OLIVEIRA, M. da G. de. Os sons do silêncio: interpelações feministas decoloniais à História da historiografia. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 11, n. 28, 2018. DOI: 10.15848/hh.v11i28.1414. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1414. Acesso em: 14 ago. 2024;
7+* Música da compositora e cantora Lia de Itamaracá.



 

 Thaianne Sousa Santana

                                                                                       Colaboradora do departamento de informação

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