Devem as feministas apoiar (acriticamente) qualquer mulher num cargo de poder?
O caso simbólico de Margaret Thatcher
O presente artigo destina-se a responder a uma questão, muitas vezes suscitada por provocações que tentam descredibilizar certas vertentes do movimento feminista. Mas, frequentemente, este diálogo tem também origem na genuína procura de respostas que conciliem este tipo de arbítrios com as ideias impostas por um feminismo main stream. Este perpetua, ainda que discretamente, a visão de que as feministas pretendem a integração das mulheres numa sociedade sistematicamente misógina. Coloca-se, então, o seguinte problema: Devem as feministas apoiar qualquer mulher que alcance um cargo de poder? A minha resposta é não. Este parecer reduz os fins da luta feminista ao sucesso de um número restrito de mulheres privilegiadas, em ambientes tipicamente dominados por homens; a resposta contrária implicaria que o movimento tivesse apenas em conta os problemas da pequena percentagem de mulheres que reúnem os requisitos necessários para constituir casos de sucesso. Estes assentam inerentemente em fatores como a cor da pele, a classe, a orientação sexual, a identidade de género e a naturalidade das mulheres em questão. O simples facto de uma mulher conseguir afirmar-se num mundo de homens, não significa necessariamente uma mudança positiva para as demais, sendo relevante alertar para o facto de que, recorrentemente, não há sequer a intenção de alcançar estas transformações.
Um exemplo paradigmático desta visão reducionista é o de Margaret Thatcher, a primeira mulher a tornar-se Primeira-ministra na Europa.
Antes de se tornar Primeira-ministra, Thatcher foi Secretária de Estado para a Educação e Ciência, no governo conservador de Edward Heath, tendo protagonizado um movimento político de redução de gastos do Governo. Foi neste contexto que a futura Dama de Ferro pôs fim ao programa de fornecimento gratuito de leite a crianças e grávidas, que passou a ser disponibilizado apenas até aos 7 anos, programa este que tinha sido iniciado na década de 1940 com o propósito de combater a desnutrição, causada pela escassez de leite em tempos de guerra. Esta redução acabou por não ter grande impacto orçamental.
Avançando no tempo, Thatcher tornou-se Primeira-ministra em 1979, já no final da segunda onda do feminismo no Reino Unido, tendo esta vitória sido interpretada por algumas pessoas como um marco de esperança para as mulheres. Contudo, muitas feministas demonstravam-se justificadamente preocupadas com as suas posições ideológicas. Sob o pretexto de se focar na competência e na lealdade dos seus ministros, Thatcher tornou-se na primeira Primeira-Ministra do pós-guerra a não ter mulheres no seu gabinete, depois de retirar Janet Young da Câmara dos Lordes. As constantes obsessões com as privatizações, com o corte do gasto público e com a desregulamentação do mercado constituíram grandes retrocessos no que respeita à política moderna progressista e feminista, assente em programas sociais. Fomentou, ainda, o individualismo característico do modelo neoliberal, dentro e fora do mercado, tendo consequências extremamente lesivas, nomeadamente para as classes mais desprovidas. As medidas de Thatcher privaram mais de metade das mulheres trabalhadoras britânicas de elementos de proteção da maternidade. Estudos políticos comparativos mostram-nos, ainda, que a percentagem de decisões legislativas relativas a questões relacionadas com os direitos das mulheres, favoráveis aos interesses das feministas na sua generalidade, decresceu, ironicamente[1]. Exemplo desta atividade legislativa regressiva é a cláusula 28, introduzida em 1988, que proibiu autoridades locais de “promover a homossexualidade”[2], e que esteve em vigor até 2003.
É difícil, por tudo isto, mas muito mais, aceitar que as vitórias da Dama de Ferro constituíram uma conquista significativa para a proeminência política das mulheres. Mas ao contrário do que possa parecer, o principal foco deste artigo não é escarnecer a figura de Margaret Thatcher, mas antes apresentar uma análise crítica que deverá servir como ponto de partida para uma reflexão mais direcionada à atualidade.
Margaret Thatcher não é um caso único. Em Portugal, atualmente, também temos mulheres em cargos de poder comprometidas com uma agenda conservadora e antifeminista. É o caso da deputada Rita Matias, do partido CHEGA, entre muitas outras, ou ainda da atual candidata a Juíza do Tribunal Constitucional, Maria João Vaz Tomé, indicada pelo PSD, que tem demonstrado uma posição ambígua no que tange o alargamento do prazo de dez semanas para a prática da IVG.
Respondendo à questão inicial, é importante que haja esta compreensão de que nem todas as mulheres pretendem advogar pela causa feminista, ou sequer ser um avanço desta, pelo que não devemos apoiar acriticamente todas as mulheres em cargos de poder. Devemos, antes, posicionarmo-nos, lutar e votar em quem está comprometido com os nossos direitos.
Rosa Munguambe, colaboradora do departamento da informação
Bibliografia:
Feminism Under Duress: Was the Thatcher Government Bad for the Women’s Movement in the U.K.?, Katie Weaver
WHAT WAS MARGARET THATCHER’S LEGACY FOR WOMEN?, June Purvis, University of Portsmouth, UK
International Studies in Social Sciences and Humanities – The Relation Between Capitalism State and Feminism: A Critical Assessment, Mehmet Kanatli
Tough Times in Review: The British Women's Movement during the Thatcher Years, Sylvia Bashevkin
Webgrafia:
https://www.mcgill.ca/oss/article/food-history/thatcher-thatcher-milk-snatcher
https://www.bbc.com/bbcthree/article/cacc0b40-c3a4-473b-86cc-11863c0b3f30
https://manhattan.institute/article/thatcher-loved-merit-decried-equal-pay
https://www.theguardian.com/education/2003/jul/11/schools.uk1
[1] Tough Times in Review: The British Women's Movement during the Thatcher Years, Sylvia Bashevkin
[2] O simples facto de existirem personagens homossexuais em livros ou de um casal homossexual andar de mãos dadas na rua era visto por Thatcher como “promoção da homossexualidade”, bem como o ensino, em qualquer escola, da aceitação da homossexualidade como uma possível relação familiar