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Sexualidade e Autonomia corporal : uma análise do erotismo na literatura e pornografia 

O erotismo coexiste em linhas paralelas às da história da humanidade. Sendo o sexo uma parte

essencial da cultura e da sociedade, era de admirar se tal não se verificasse.

Em texto, vêem-se os primeiros traços deste género literário em livros como o Kama Sutra ou as

Metamorfoses, que exploram o contexto cultural e espiritual do erotismo, sempre dentro de uma

ótica masculina e utilitarista, que prioriza o prazer do homem e/ou a procriação. Mais avante na

História, assiste-se, concomitantemente com o poder e riqueza que a religião católica começa a

acumular, à repressão do prazer sexual, que simbolizava o pecado, e encabeçava a mulher como

um Lúcifer lascivo que corrompia os mais puros.

Só em finais do século XIX e no século XX é que se consolidou a verdadeira literatura erótica de

autoria feminina. Autoras como Anaïs Nin e Marguerite Duras são os pilares do erotismo

literário do século XX, tratando nas suas obras de temas irreverentes como o prazer feminino e a

autonomia corporal da mulher, pelo que a relevância das suas criações perdura até à atualidade.

Pode-se contestar a real importância deste tema; a familiaridade atual para com o prazer afasta-

nos do puritanismo de uma sociedade afinal não tão distante. Porém, não se pode descartar o papel

que o género literário teve na luta pela liberdade da mulher: usado como uma ferramenta de

rebelião e crítica social, o erótico feminino distancia-se da objetificação a que o corpo feminino

estava sujeito, quando submetido à mão do escritor-homem.

O erotismo é inédito na forma como aborda assuntos considerados tabu pela maioria; a irreverência

do género será, por si só, um ato de rebeldia contra o status quo existente.

Observe-se, por exemplo, como Anaïs Nin desconstrói o desejo feminino: este não é apenas

consumado; ele é provado, sentido, narrado e reclamado como símbolo do poder e expressão da

identidade.

A mulher, no erótico feminino, deixa de ser um instrumento reprodutivo, o objeto do desejo

masculino, para ser dona de si mesma e do seu prazer – há, aqui, a reivindicação da sexualidade e

do corpo da mulher, outrora capturados por autores masculinos que viam a mulher como nada

mais, nada menos, que uma coisa a ser utilizada como um instrumento de prazer e desejo.

Atualmente, apesar da literatura erótica se aparentar desatualizada face aos meios de comunicação,

pode-se considerar uma comparação equidistante entre o erotismo e a pornografia.

Diferente do erotismo – que se pode classificar como a representação da sexualidade, dando

ênfase ao desejo, intimidade e conexão emocional1

–, a pornografia (e todos os seus outros meios

de manifestação, como, p.e., Only Fans) está intrinsecamente ligada à vertente física da

sexualidade, ignorando muitas vezes a intimidade e a dimensão emocional do sexo. Pode-se dizer

que, nos dias correntes, a pornografia tomou o lugar que outrora pertencera à literatura erótica,

com um senão; a mulher passa, mais uma vez, a objeto, assistindo-se a um retrocesso naquilo que

simboliza a sexualidade da mulher através do mesmo meio que um permitiu a sua libertação.

Penso que, num contexto atual, haja alguma confusão sobre aquilo que autonomia corporal

significa. Captar o papel feminino como um de sujeição e de objeto de desejo – objeto este que

instrumentaliza a aquirição de prazer pelo patriarcado – reforça dinâmicas de poder tradicionais,

para além retirar ao sexo elementos fulcrais, como a inerente intimidade do ato partilhado entre

indivíduos (o sexo passa a ser entre o homem e o objeto do seu desejo e instrumento do seu prazer,

materializado no corpo da mulher – o que, por sua vez, desvirtua também a natureza das relações

homossexuais). O papel da mulher no contexto da pornografia aparenta ser um de libertação, típico

do feminismo liberal, onde a mulher pode ser o que quiser, quando quiser, e nas condições que

melhor lhe proverem. Ora, numa realidade fantasiosa, onde a luta feminista não precisasse de se

fazer presente, esta premissa seria ideal; porém, num mundo onde as desigualdades são (ainda)

evidentes e, muitas vezes, gritantes, a libertação feminina nunca se dará pelo meio da sexualização

do corpo.

O motivo para tal é facilmente explicado quando, no decorrer da história da humanidade, se assiste

à objetificação do corpo da mulher, tanto como um meio de reprodução, como o de um objeto pelo

qual se dá a saciação do prazer; e, enquanto estas duas realidades se mantiverem um obstáculo à

1 Por isto, entenda-se que prioriza a psique enquanto símbolo do prazer.

emancipação do corpo feminino, não se poderá considerar como autonomia corporal o ato que,

transforma o corpo num produto capaz de ser comercializado e utilizado, perpetuando – direta ou

indiretamente – estigmas que inviabilizam o que o movimento feminista procura alcançar (id est,

a autonomia corporal da mulher), ainda que atuando sob a égide deste.

A realidade em que vivemos não permite que exista uma total liberdade do corpo, ainda que sob o

amparo do erótico, ou muito menos da pornografia; a perpetuação de estereótipos e a ‘mono-

definição’ da mulher enquanto ser inerentemente promíscuo e sexual distanciam-na do ser humano,

separam a essência do ser e desconstroem o complexo que compõe o indivíduo para tornar a

mulher em algo desprovido de sofisticação, com uma única característica que a define num todo:

a sua sexualidade (note-se que, para muitos, esta ideia age como legitimação para a prática crimes

graves, como o tráfico sexual).

É, portanto, importante rever os ideais que servem de fundação ao movimento erótico, e analisar

em que medida é que estes foram desconfigurados e modificados na literatura; a análise do

passado, daquilo que está na raiz e que espelha a nossa situação corrente, nunca pode ser ignorada,

pois só através desta é que encontramos as ferramentas necessárias para mudar e evoluir.

No seu estado atual, o capitalismo devora e desvirtua tudo aquilo de que se consegue aproveitar; a

pornografia e todos os outros meios de expressão da sexualidade online parecem subir cada vez

mais em popularidade, o que nos indicia para um futuro inquietante; a monetização dos corpos e

da sexualidade leva-nos na direção oposta da liberdade sexual, e a dependência do dinheiro dá aso

a situações insustentáveis para todos os que ‘’vendem’’ o corpo em nome da sua própria autonomia

(o que em si não deixa de ser paradoxal).

Cabe agora a cada um de nós lutar contra a avareza, que abusa da dignidade humana a nome da

liberdade; só assim pode o erótico ser uma verdadeira manifestação da liberdade sexual.

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