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A Maternidade como Destino: Uma Reflexão sobre a Condição Feminina

O amor. A verdadeira vida começava agora para ela. Não, não a vida que foi antes do casamento, quando ela era governada pelo desejo, mas agora que ela tem o verdadeiro conhecimento da vida, pois havia experimentado a maternidade e sabia o que significava sacrificar-se pelos outros.

Anna Karenina ilustra, à face da contemporaneidade, uma imagem desconcertante e atual da mulher: sob a outra face da moeda da liberdade e autonomia, está a maternidade, o verdadeiro destino de cada mulher, o epítome do feminino.
A mulher na literatura pode ser uma de três pessoas: a virgem, a prostituta ou a mãe. Uma, é casta, desejável, pura em todos os aspetos; outra, a figura do diabo e tentação encarnados, tão doce que envenena com as palavras, gestos; e a última, é o conforto personificado, é casa, é o dever, é tudo o que os autores apresentam como a mulher ideal, perfeita e idónea. A mãe é a submissa, a essência do lar, o conforto da família, a doçura que acalenta a assertividade masculina. Ela cuida e ama, sem sonhos ou desejos próprios de si, para além daquele que já concretizou: a maternidade, fruto do matrimónio. Ela representa a segurança da ‘missão cumprida’, do ‘destino alcançado’; resta questionar-nos de onde é que surge este propósito quase que divino, que até aos dias de hoje assombra e delimita a mulher, em muito, à sua função reprodutiva.
A maternidade foi vendida às mulheres como a sua vocação natural, um destino inescapável, por via da capacidade feminina biológica de reprodução (o que, diga-se de passagem, não é nem de perto uma descrição precisa de todas as mulheres). Vemos que esta ideia foi passada de geração em geração, em primeira necessidade como meio de subsistência da raça humana, e em segundo plano como meio de controlar a autonomia corporal da mulher.A literatura foi um dos meios usados para a transmissão desta ideia, especialmente a partir do século XVIII, quando foi socialmente aceite as mulheres começarem a ler (ainda que existisse alguma controvérsia quanto à leitura de romances).

Porém, haverá sempre aqueles que remarão contra a corrente. Já no século XIX, Emma Bovary (protagonista do romance Madame Bovary) mostra-nos a crise existencial de uma mulher que não anseia os seus deveres dentro matrimónio. Diz Emma, «Porquê, meu Deus, tive eu uma filha?», e apesar de, no livro, a personagem quase ser ridicularizada pelos seus ‘’caprichos’’ (que são, na realidade, apenas ambições – mas o texto e a literatura serão sempre ambíguos nos termos que usam para definir os mesmos conceitos consoante se dirijam a um homem ou a uma mulher) –, a verdade é que a maternidade é vista pela protagonista como uma renúncia à própria liberdade, sendo-lhe impossível ligar-se à filha da maneira que idealizou – passando a criança a representar as limitações que lhe foram a si impostas.
Por outro lado, na literatura russa, Anna Karenina mostra-nos o mesmo sentimento de perda de identidade e uma solidão existencial que parece inconsolável, contrariando a realidade vendida à mulher de que ser mãe representa a completude e realização pessoais, atingidas unicamente através da conceção de um outro ser (ou seja, a felicidade absoluta para a mulher está dependente da reprodução).
Parece existir aqui uma romantização daquilo que é o sacrifício maternal, onde as mães sacrificam tudo de si pelos filhos. Este sacrifício é visto, então, como uma virtude unicamente feminina, porém, isto faz com que a mulher se torne dependente dos filhos para encontrar essa virtude em si mesma, o que lhe custará a individualidade. Claro, isto é extremamente aliciante, visto que a sociedade venera o sacrifício e sustenta-o, por simbolizar a martirização da mulher pelo caráter carinhoso e maternal inerente à própria condição biológica, que ultrapassa qualquer amor paternal – colocando, assim, a maternidade num pedestal superior ao da masculinidade, uma característica alcançável apenas para alguns e, por isso, invejável. Perguntamo-nos, então, com o olho posto à atualidade: Isto mudou? É a maternidade, ainda, uma extensão necessária e codependente da feminidade?
No século XX, SIMONE DE BEAUVOIR estava a produzir o seu magnum-opus, ‘O Segundo Sexo’, onde explicava a posição social da mulher como ‘’outro’’, em relação ao homem (este que ocupa a posição de sujeito universal). Assim, esta definição condiciona a existência da mulher, que terá de passar a sua vida a adequar a sua identidade ao redor de uma construção individual feita para agradar às expectativas masculinas e sociais. Neste sentido, a mulher é reduzida ao papel de mãe e esposa, como seu ‘’destino natural’’, o que lhe retira a opção de ditar a sua própria existência.
BEAUVOIR mostra a maternidade como um conceito romantizado e imposto às mulheres, como um instrumento de controlo sobre as mesmas. A sociedade, ao definir que a função de mãe é o destino último da mulher, condiciona-a através da enfatização da ideia de que a mulher só encontrará sentido e realização pessoal exclusivamente através da reprodução –torna-se, portanto, uma limitação ao desenvolvimento e liberdade pessoais.
A maternidade não pode ser o centro da identidade feminina; tal nega à mulher a possibilidade de definir a sua própria vida fora do âmbito reprodutivo – o que nega quase num todo a existência de mulheres trans e inférteis. A maternidade não pode ser considerada um instinto natural; este próprio conceito, em si, invalida a multidimensionalidade da mulher, que é muito mais que um simples meio de reprodução – também é alguém com sonhos e ambições, gostos e desgostos. O peso da conformidade faz com que muitas mulheres necessitem de ter um filho para obterem a validação social ou se sentirem ‘’completas’’ dentro da estrutura patriarcal. Porém, este desejo em si pode causar a alienação da mulher de si mesma e da sua identidade, gerando conflitos internos e insatisfação com uma vida onde a sua identidade está dependente de terceiros (os seus filhos).
A maternidade pode, claro, fazer parte dos objetivos pessoais de muitas mulheres, mas nunca poderá ser uma condicionante ao ser mulher, e à feminidade, que é em si um conceito tão único a cada uma, que acaba por ser de tão difícil compreensão que seria um desfavor torná-lo algo tão pouco ambíguo ao permitir tornar estes dois termos intrínsecos um ao outro.




 
 Catarina Vaz
                                                                                       Colaboradora do departamento de informação

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